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Crítica da sociologia de um Brasil inexistente

Foto: divulgação


Lançado há alguns anos, meu livro “Poder do Atraso – Ensaios de sociologia da história lenta”, compila duas palestras que apresentei na Universidade de Londres, em 1994. Tratam-se dos temas “Clientelismo e corrupção no Brasil contemporâneo” e “A conexão entre o capital e a posse de terras no Brasil: A aliança atrasada”. Nesses escritos, investigo a dimensão política nas características estruturais e históricas únicas da sociedade brasileira, aspectos esses que mudam de forma lenta, sem transformações significativas e concretas.
Desde o início de minhas pesquisas, em 1965, venho me dedicando a explorar os elementos e causas do atraso dessa sociedade, divergente das sociedades responsáveis pela criação fundamental do objeto científico pioneiro, a sociologia.
Quando a sociologia estava emergindo, o Brasil mantinha a escravidão como prática legal. Somente começou a adotar um raciocínio verdadeiramente sociológico com as obras referenciais de Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha, e até em uma obra surpreendente de Machado de Assis, “O Alienista”, que retrata um personagem ao mesmo tempo alienado, louco e poderoso. Esse traço continua sendo uma marca persistente do nosso caráter nacional e das limitações políticas que enfrentamos.
Com a criação da república anti-republicana de 1889, os militares golpistas contra os republicanos civis do partido fundado em Itu, em 1873, adotaram o lema positivista e sociológico de “ordem e progresso” na bandeira, uma escolha estrangeira e desconfortável.
Alberto Torres, em um clássico do pensamento social brasileiro, destacou nossas peculiaridades ao observar que a ordem predominava na escravidão, uma ordem de submissão pessoal do escravo e isolamento social dos brancos, diferente da concebida por Augusto Comte e os positivistas. Aqui, a ordem idealizada pelo positivismo militar servia como um meio de suprimir a dissidência, equilibrando a ineludível liberdade, como a da abolição. Essa concepção de ordem deslocada serviu e continua servindo como um substituto do chicote e do tronco usados pelos senhores de escravos.
A ocorrência de violência física, por exemplo, nas modernas situações de escravidão por dívida, é uma repetição de um método de dominação nas relações de trabalho. É característica da nossa história gradual. Portanto, não é surpreendente que, em um país formalmente capitalista como o Brasil, ainda persistam formas de trabalho não capitalistas.
O Brasil caracteriza-se por um peculiar capitalismo retardatário, pontuado por contradições especiais, diferentes dos conflitos típicos discutidos nos manuais de política ideológica ou nos manuais de economia do desenvolvimento, determinando uma sociedade condenada à ordem, mas sem progresso.
As ciências sociais aqui falham ao tentar entender nossa sociedade como ela realmente é, preferindo interpretar aquilo que ela não é e provavelmente jamais será. Analisamos como se fosse, de fato, uma sociedade capitalista, porque assim acreditamos. Porém, pensar não é tarefa da ciência.
As peculiaridades das sociedades as tornam distintas dos modelos clássicos de teoria, refletindo os desafios de interpretar suas diferenças, e não apenas o que aparentemente replicam das sociedades dominantes.
Nesse contexto, a antecipação do imprevisto torna-se uma ferramenta que os cientistas sociais, especialmente os sociólogos em um país como o nosso, não podem ignorar em seus métodos de pesquisa. O Brasil que exploramos cientificamente é mais o país da língua mestiça de português e nheengatu do que o português de Camões e do Padre Antonio Vieira. Uma língua que exprime uma realidade de submissão, medo, dissimulação e ambiguidade. Uma língua de aparências, suposições e incertezas.
O autoritarismo brasileiro atual, exacerbado pelas mentiras presentes e manipulação social, parte da premissa de que o povo é vulnerável ao poder externo. Os poderosos agem com base nessa crença. No entanto, a duplicidade de nosso caráter social permite ao povo, por vezes, manipular quem o manipula. Existe um significado oculto, um lado invisível e ativo da sociedade e da prática. Como Henri Lefebvre sugeriu, podemos entender isso como o contrário do que é visto e compreendido.
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(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)

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